A invenção da homossexualidade!
in BAGOAS - estudos gays, gêneros e sexualidades, Natal, 2, 71-93, 2008
O leque das culturas humanas é tão vasto, tão variado (e de fácil manipulação) que, sem dificuldades, encontramos argumentos que sustentam toda e qualquer hipótese.
Claude Lévi-Strauss
Introdução
Ao sustentar a existência de uma “sexualidade natural” no ser humano, o imaginário judaico-cristão dominante no Ocidente cristalizou e isolou as expressões da sexualidade, como se tais manifestações possuíssem realidades concretas. O passo seguinte foi a criação de nomenclaturas para descrever, classificar e etiquetar as práticas sexuais. Foi também em referência à sexualidade natural que surgiu a noção de normal, que como toda norma, é um construto teórico, logo ideológico, tributário do imaginário sócio-cultural no qual ela emerge. A partir daí, toda forma de sexualidade que não se encaixe nesse imaginário é tida como desviante ou patológica (Ceccarelli, 2000).
A insistência em transformar comportamentos em categorias identitárias contribui enormemente para a criação de uma espécie de armadura em que o sujeito, em eco com o sistema de valores morais ocidentais, vê-se aprisionado em uma forma normativa de viver a sexualidade.
Com este título um tanto provocador – A invenção da homossexualidade –, pretendo insistir sobre a participação do imaginário ocidental não apenas na “invenção” da homossexualidade – entendida aqui como um artefato classificatório – como em sua manutenção. Pretendo ainda mostrar que a origem desta “invenção”, assim como a imposição de uma sexualidade natural, heterossexual e para procriação, é uma construção simbólica própria à cultura ocidental, cujas bases remontam aos elementos mitológicos constitutivos do imaginário ocidental.
Evidentemente, do ponto de vista fenomenológico, a atração sexual entre pessoas do mesmo sexo existe desde a aurora da humanidade em todas as culturas. A época e o local determinaram o tratamento que se deu a esses sujeitos: prática comum e bem tolerada na Grécia, Pérsia, Roma e China, mas condenada entre os Assírios, os Hebreus e os Egípcios. Entre os índios brasileiros, assim como em algumas sociedades africanas - a antropologia é rica em relatos -, as reações frente ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo variam desde a aceitação, como uma expressão legítima da sexualidade, até a rejeição absoluta. Com o advento do cristianismo, a homossexualidade torna-se, em certos períodos, um crime passível de morte.
Inicio minha argumentação com uma pequena revisão, que não se pretende exaustiva, sobre a posição da psicanálise, mas sobretudo a dos psicanalistas, em relação à homossexualidade (1). A discussão sobre sua origem – trata-se de uma perversão? de um desvio? de uma manifestação de sexualidade como outra qualquer? – está longe de fazer unanimidade entre os pesquisadores.
A homossexualidade na obra freudiana
Nos textos de Freud encontramos vários trabalhos teórico-clínicos, desde o Manuscrito H, endereçado a Fliess, até o Esboço de psicanálise, em que a homossexualidade é discutida. Os que merecem destaques são: Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, e sobretudo as notas de rodapé acrescentadas em 1925 e 1920), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), O caso de Schreber (1911), e Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920).
O que se depreende da leitura desses textos, embora algumas ambigüidades existam, é que a homossexualidade é uma posição libidinal, uma orientação sexual, tão legítima quanto a heterossexualidade. Freud sustenta esta posição partindo do complexo de Édipo, fundado sobre a bissexualidade original, como referência central a partir da qual a chamada “escolha de objeto” ou “solução”, que acho mais adequado, vai se constituir. Esta escolha, que não depende do sexo do objeto, é a base dos investimentos futuros. Uma vez que os investimentos libidinais homossexuais estão presentes, ainda que no inconsciente, de todos os serem humanos desde o início da vida, Freud opõe-se
com o máximo de decisão, que se destaquem os homossexuais, colocando-os como um grupo à parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais (...). Ao contrário, a psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo – que recai igualmente em objetos femininos e masculinos –, tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história, é a base original da qual, como conseqüência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais quanto os invertidos (1905, p. 146).
Como conseqüência, continua Freud na mesma frase,
do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo do homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração afinal de natureza química (p. 146).
Anos mais tarde, precisamente em 1920, Freud deixa ainda mais clara sua posição em relação à homossexualidade:
Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições pulsionais (1920, p. 211).
A conclusão que podemos tirar é que tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade são destinos pulsionais ligados a resoluções edipianas.
A base da argumentação de Freud está na visão completamente nova e revolucionária que ele dará à noção de psicossexualidade. No texto de referência sobre o tema, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud afirma que, no ser humano, a pulsão sexual não tem objeto fixo, ou seja, ela não está atrelada ao instinto como nos animais. Ao contrário, o objeto da pulsão é diversificado, anárquico, plural e parcial; exprime-se de várias formas: oral, anal, escopofílica, vocal, sádica, masoquista, dentre outras. Com isto, Freud divorcia a sexualidade de uma estreita relação com os órgãos sexuais, passando a considerá-la como uma função abrangente em que o prazer é sua finalidade principal, e a reprodução uma meta secundária. Além disto, ao postular que a sexualidade vai além dos órgãos genitais, Freud leva “as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito que o dos adultos normais” (1925, p. 52). Nesta perspectiva, em que as pulsões parciais integram o psiquismo humano, o conceito de normalidade perde seu sentido, tornando-se uma ficção: não existe diferença qualitativa entre o normal e o patológico. A diferença reside nas pulsões componentes dominantes na finalidade sexual. Além disso, se os impulsos afetuosos e amistosos, reunidos na “palavra extremamente ambígua de ‘amor’”, nada mais são do que moções pulsionais sexuais “inibidos em sua finalidade ou sublimados” (Freud, 1925, p. 52 – grifo do autor), cada sujeito possui um vestígio de escolha de objeto homossexual.
Finalmente, à biologia, à moral, à religião e à opinião popular, Freud vai dizer o quanto elas se enganam no que diz respeito à “natureza” da sexualidade humana: a sexualidade humana é, em si, perversa. Agindo a serviço próprio ao buscar o prazer, ela escapa a qualquer tentativa de normalização e subverte a natureza “pervertendo”, assim, seu suposto objetivo supostamente natural: a procriação. A sexualidade é contra a natureza: em se tratando de sexualidade, não existe “natureza humana”.
Freud não apenas argumenta seus pontos de vista teoricamente como os sustenta na prática. Em 1903, quando a homossexualidade era tida como um problema médico e jurídico, o jornal vienense Die Zeit pede a Freud que se pronuncie sobre um escândalo envolvendo uma importante personalidade acusada de práticas homossexuais. Freud responde que
a homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. (...) Eu tenho a firme convicção que os homossexuais não devem ser tratados como doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isto nos obrigaria a qualificar como doentes um grande números de pensadores que admiramos justamente em razão de sua saúde mental (...). Os homossexuais não são pessoas doentes (1903 apud Menahen, 2003, p. 14).
Em 1921, Freud recebe uma carta de Ernest Jones, então presidente da International Psychoanalytical Association (IPA). Nela, Jones relata a Freud que recebera um pedido de admissão à Sociedade de um analista homossexual. Jones é contra sua admissão. Na resposta à carta, assinada por Freud e Otto Rank, lê-se:
Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos homossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos com você. Com efeito, não podemos excluir estas pessoas sem outras razões suficientes (...) em tais casos, a decisão dependerá de uma minuciosa análise de outras qualidade do candidato (Lewis, 1988, p. 33).
Finalmente, temos a famosa carta de Freud, escrita em 1935, a uma mãe americana que solicita seus conselhos sobre seu filho homossexual:
A homossexualidade não é, certamente, nenhuma vantagem, mas não é nada de que se tenha de envergonhar; nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual (Jones, 1979, p. 739).
Os pós-freudianos e a homossexualidade
Entretanto, a posição freudiana em relação à questão não obteve consenso entre os analistas, chegando mesmo a provocar polêmica entre a Sociedade Psicanalítica de Viena e a de Berlim. Os últimos, dirigidos por Abraham, consideravam que os homossexuais eram incapazes de exercer a profissão de analista, pois a análise não os “curaria” da “inversão” que sofrem. A Sociedade de Viena, apoiada em Freud, tinha uma opinião totalmente contrária, como vimos na carta de Freud a Jones citada acima.
Anna Freud, filha e herdeira intelectual da obra de Freud, tentou em sua prática clínica transformar homossexuais em pais de famílias heterossexuais, o que redundou em grandes fracassos. Contrariamente a seu pai, ela sempre militou contra o acesso de homossexuais à profissão de analistas. Anna deixa clara sua posição, em uma carta datada de 1956 à jornalista Nancy Procter-Gregg, desencorajando-a a publicar a famosa carta de seu pai de 1935:
Existem várias razões para isto [para que a carta não seja publicada]. Uma é que hoje se pode tratar mais homossexuais que se fazia outrora. Outra é que os leitores poderão ver aí uma confirmação do fato que tudo que a análise pode fazer é convencer os pacientes que seus defeitos ou “anomalias” não são tão graves assim, e que eles deveriam aceitá-los com alegria (Young-Bruehl, 1991, p. 57).
Ainda que se possa argumentar que o rigor desses analistas em só admitir entre seus pares pessoas acima de qualquer suspeita deva ser atribuído as resistências à psicanálise, que era acusada de corromper a sociedade com suas teorias sexuais, é muito difícil saber as verdadeiras razões que levaram esses dois importantes nomes da psicanálise das primeiras décadas – Anna Freud e Ernest Jones – a adotarem posições tão repressivas em relação à homossexualidade (2).
Outra importante Escola de Psicanálise, a corrente ligada a Melanie Klein, entendia a homossexualidade feminina como uma identificação a um pênis sádico, e a masculina como um problema esquizóide da personalidade ou como uma defesa contra a paranóia: em ambos os casos, tratava-se de uma patologia grave, uma variante de um estado psicótico mortífero e destruidor. Isto significa definir os homossexuais como doentes, desviantes, o que conseqüentemente os impedia de se tornarem analistas. (Tais posições, amplamente apoiadas pelas sociedades psicanalíticas norte-americanas filiadas à IPA, só recentemente, veremos, foram repensadas.)
O grande expoente da psicanálise francesa, Jacques-Marie-Émile Lacan, teve uma posição diferente em relação aos homossexuais. Em uma época em que as sociedades psicanalíticas francesas seguiam o modelo americano de impedir o acesso de homossexuais à formação analítica, Lacan os recebia em análise, aceitava-os como membros da École Freudienne de Paris, fundada por ele, e nunca tentou transformá-los em heterossexuais. Para Lacan, entretanto, a homossexualidade não era, como para Freud, uma orientação sexual. Segundo Roudinesco (2002a, p. 16), a posição de Lacan é bem próxima da de Michel Foucault e de Gilles Deleuze que valorizavam a perversão como uma contestação radical à ordem social burguesa. Lacan, que dizia haver sempre uma disposição perversa em toda forma de amor (3), entendia o homossexual de uma maneira bem próxima à de Proust: um personagem sublime e maldito; um “perverso”, pois ele subverte, perverte, o discurso dominante da civilização. Por conseguinte, o reconhecimento da homossexualidade como “subversão” não levava nem à discriminação nem a discursos repressivos. (É por entender a homossexualidade neste mesmo viés – uma subversão ao discurso machista dominante – que Bourdieu (2000) deplora a reivindicação de normalização dos movimentos gays, pois ao fazerem isso, voltam contra si mesmos o discurso hegemônico.)
A homossexualidade na atualidade
Mas, o debate continua como nos tempos freudianos: há analistas que vêem a homossexualidade como algo que pode e deve ser tratado, e aqueles, mais próximos de Freud, que a entendem como uma posição libidinal ao mesmo título que a heterossexualidade. O número de trabalhos que têm sido publicados sobre o tema nos últimos anos é significativo, para não dizer sintomático. Embora não seja o escopo deste trabalho fazer uma revisão da literatura recente sobre o tema, para a qual remeto o leitor interessado (4), cabe citar algumas posições teórico-clínicas.
Existem aqueles que não escondem sua homofobia. É o caso, por exemplo, de Edmund Bergler e de Carles Socarides. Ambos, que tiveram importantes posições em Sociedades Psicanalíticas norte-americanas, contribuíram enormemente para discriminação dos homossexuais que pretendiam se tornar analistas. Em 1956, Bergler escreve:
Não tenho preconceito contra a homossexualidade... [mas] os homossexuais são, por essência, pessoas desagradáveis, que não se preocupam se suas atitudes agradam ou não. Possuem uma mistura de arrogância, falsa agressão e lamúria. Como todos os masoquistas psíquicos, são obsequiosos quando se encontram confrontados a uma pessoa mais forte; impiedosos quando têm o poder, sem escrúpulos quando se trata de esmagar alguém mais fraco... raramente encontramos um ego intacto entre eles (1956, p. 26).
E Socarides, em 1995:
O homossexual pode parecer não ser doente, exceto na hipocrisia de sua vida sexual. Certos homossexuais muito perturbados não têm angústia, pois estão constantemente engajados em relações sexuais com pessoas do mesmo sexo – o que alivia sua ansiedade (1995, p. 110).
Em clara oposição às teses freudianas, mas na mesma linha de pensamento que Anna Freud, existem os que, baseados em uma suposta falha narcísica nos homossexuais, concluem que
a hora atual, com o aumento do conhecimento tanto teórico quanto clínico, é possível afirmar que a psicanálise pode resolver o problema da homossexualidade (Botella,1999, p. 1039). [Vale notar que o autor deste texto deixa claro que está trabalhando com modelos teóricos sem sustentação clínica!]
Mas há os que pensam diferente. No Congresso Internacional de Barcelona, em 1997, Ralph Roughton, analista didata de Sociedade Psicanalítica de Cleveland, USA, e membro da Associação Psicanalítica Americana, filiada à IPA, fez uma comunicação contundente que finalmente derrubou a “regra silenciosa”, segundo a qual candidatos homossexuais não deveriam ser aceitos como membros das Sociedades filiadas à IPA. Nesta comunicação, Roughton (1999), após retraçar a luta dos analistas homossexuais americanos para serem reconhecidos pela IPA e definir-se como um analista didata e homossexual, apresentou considerações clínicas pertinentes que sustentam a existência “inegável de mulheres e homens homossexuais sadios e equilibrados”.
Mas a pergunta resiste: se, como vimos, Freud teve uma posição aberta, por que a grande maioria dos psicanalistas, em princípio seus herdeiros, mantêm posições discriminatórias ou mesmo homofóbicas? Por que a homossexualidade tornou-se para a psicanálise uma doença a ser curada por meio da mudança do objeto de desejo do sujeito, de acordo com as crenças do psicanalista? Crenças estas, diga-se de passagem, que não encontram nenhum respaldo na obra freudiana.
Um impasse interno
Boa parte das ambigüidades e incongruências que encontramos em toda discussão sobre a homossexualidade é o resultado de um conflito entre, de um lado, a descoberta psicanalítica segundo a qual a pulsão não possui objeto de satisfação predeterminado e, de outro lado, a ordem simbólica, atrelada ao imaginário cultural, que tenta fixar a pulsão a objetos culturalmente valorizados. Ou ainda: um conflito entre a posição freudiana segundo a qual à psicanálise cabe apenas “revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto” e, por outro lado, a tentativa de normalização destes mecanismos psíquicos a partir de um modelo edipiano cujo “triângulo” seria a família burguesa da Viena de Freud. Freud parece perceber este conflito ao relatar o Caso Dora: quando descobre que por trás da atração de Dora por seu pai havia uma identificação a este, que se manifestava no amor homossexual de Dora pela Srª K, ele tem que admitir que não há nada de naturalmente heterossexual, e muito menos de inato, na pulsão.
A psicanálise, que em um primeiro momento foi libertadora ao denunciar a existência de uma outra cena – o inconsciente – que determina nossas escolhas objetais, tornou-se, em um segundo momento, contaminada pelos mesmos princípios dominantes que ela denunciara. Passou então a ser utilizada como referência de normalidade, guardiã de uma ordem simbólica suposta imutável, que idealiza uma forma única de subjetivação baseada nas normas vigentes: isto deu à psicanálise o poder (perverso) de deliberar sobre o normal e o patológico.
O arcabouço teórico da psicanálise não é imune às implicações da ordem simbólica da qual emerge. Os psicanalistas, a começar pelo próprio Freud, são afetados em suas escutas por seus complexos inconscientes e suas organizações identificatórias. Embora saibam, teoricamente, que o importante é seguir os caminhos pulsionais e as escolhas de objeto, não estão vacinados contra posições normativas que tendem a enquadrar as vicissitudes da pulsão na hegemonia discursiva dominante. Presos em uma espécie de arrogância psicanalítica que se vê detentora da Verdade, sentem-se autorizados a determinar as condições ideais para um desenvolvimento psíquico normal. A dinâmica do funcionamento psíquico foi abandonada e adotou-se uma prescrição normativa de circulação pulsional. É por isto que na grande maioria de trabalhos sobre o tema, vemos os pressupostos teóricos psicanalíticos sendo utilizados para sustentar o discurso heterossexual dominante.
Seja como for, todo o arsenal teórico da psicanálise não consegue explicar como se organiza a chamada “escolha de objeto”. Se, como vimos acima, heterossexualidade e homossexualidade têm que ser explicadas, pois na pulsão nada existe de natural, cabe a pergunta: como o sujeito se torna homossexual, heterossexual ou bissexual?
No que diz respeito ao “tornar-se homossexual”, foi o psicanalista norte-americano Robert Stoller (1985) quem melhor chamou a atenção para a inexistência de uma formulação psicanalítica consistente sobre a homossexualidade. Após denunciar que os analistas não chegaram a um acordo que faça consenso sobre o tema, ele mostra a falta de observações clínicas e de pesquisas convincentes sobre a questão. Stoller demonstra que as regras de escrita dos trabalhos sobre a homossexualidade, contaminadas pela retórica, pelo tom carregado dos argumentos e pela referência à autoridade, tropeçam no mesmo ponto: não conseguem reunir elementos que sustentem uma especificidade da homossexualidade em relação à heterossexualidade, e menos ainda, que mostrem que a homossexualidade é uma patologia.
Cabe-nos, então, retornar a questão de uma forma analítica e perguntar sobre o retorno do recalcado que se manifesta na insistência em patologenizar a homossexualidade e em tratá-la como um sintoma.
A grande maioria dos trabalhos sobre o tema parte do princípio, evidentemente falso, que os problemas psíquicos que o sujeito apresenta decorrem do fato de ele ser homossexual. Muitos analistas não “escutam” o sujeito que, como qualquer sujeito, têm angústias, medos, neuroses, enfim, razões para buscar a ajuda de um profissional. “Escutam”, antes, o homossexual que está ali e tendem a estabelecer a equação homossexualidade = sofrimento. Com raras exceções, o psicanalista, frente ao sujeito homossexual, parte da premissa que sua homossexualidade é sintomática – o que pode sem dúvida ser verdade, mas nem sempre: isto só será esclarecido ao longo do tratamento. As interpretações são feitas em busca do conflito que teria desviado o sujeito de uma dissolução edipiana tida como a única produtora de saúde psíquica. É curioso observar que em muitos relatos clínicos, publicados ou apresentados nos diversos encontros de psicanalistas, o primeiro dado fornecido quando o cliente é homossexual é: “trata-se de um sujeito homossexual...”. (O relato subseqüente é, a partir daí, contaminado pela orientação sexual do sujeito.) Muito raramente, para não dizer nunca, um relato clínico se inicia por: “trata-se de um sujeito heterossexual...”. Quando o analista está convencido que seu paciente é “isto” ou “aquilo”, sua atenção flutuante corre o risco de imobilizar-se, pois ele só escutará o que quer ouvir. Por exemplo, alguns analistas, como vimos, atribuem aos homossexuais a prática de uma sexualidade compulsiva, como forma de descarregar a ansiedade, que se manifestaria pela busca incessante de parceiros. Ora, o número de locais destinados ao público heterossexual em busca de parceiras é muito maior que os locais destinados aos homossexuais. Isto mostra que se “promiscuidade” existe, ela é característica da organização psíquica de alguns sujeitos, sobretudo masculinos, sejam eles homossexuais ou heterossexuais; em alguns casos, uma defesa contra a castração. Além disso, sabemos muito bem que conhecer a “orientação sexual” de alguém em nada nos informa sobre sua saúde, maturidade ou imaturidade psíquica, e muito menos sobre seus conflitos internos. A maneira como cada um vive sua sexualidade é, sem dúvida, parte importante de sua identidade subjetiva, ou se preferirmos, de sua personalidade, mas não a define. O que somos, o que cada um é, vai muito além de sua prática sexual.
Mais ainda. Vimos, no que diz respeito à admissão de analistas homossexuais nas Sociedades de Psicanálise, que a história da psicanálise foi, e continua sendo, repleta de calorosas discussões e debates com posições extremamente divergentes e conflitantes. Entretanto, essa mesma história é muito mais rica em relatos de violações de limites de analistas não-homossexuais com seus clientes (Gabbard, 1996).
No campo da sexualidade, desde os tempos de Freud até hoje, não há provavelmente Sociedade Psicanalítica alguma que tenha ficado ao abrigo de acontecimentos envolvendo relações (sexuais ou não) entre analista e cliente, em que os limites do setting analítico foram ultrapassados (Ceccarelli, 2004). Em uma carta de 14 de janeiro de 1912 a Ernest Jones – o mesmo que impede o acesso de homossexuais às Sociedades de Psicanálise –, Freud deplora a compulsividade sexual de Jones: “lamento muito que você não seja capaz de controlar tais tendências [a impulsividade sexual], conhecendo bem, ao mesmo tempo, as fontes de onde se originam todo este mal” (Paskaukas, 1993, p. 124).
Uma possível explicação para que este tipo de atuação nunca tenha sido critério de admissão, ou de expulsão, nas sociedades psicanalíticas é que ela, embora reconhecida como problemática, encaixe-se perfeitamente na idéia de um destino pulsional heterossexual normal, cujo controle escape ao sujeito. Entretanto, as conseqüências variam enormemente, sabemos muito bem disto, se a analista é homem ou mulher.
Outro fato curioso: em minha experiência clínica de vários anos, tenho observado que a orientação homossexual funciona como um “cartão de visita” a ser apresentado logo nas primeiras entrevistas. (A não ser, é claro, quando o sujeito percebe sua sexualidade como algo tão assustador que necessite de várias sessões para “detectar” a possível reação do analista.) Quase sempre, entretanto, o sofrimento devido ao fato de ser homossexual advém muito mais de questões sociais e medos – “o que os outros vão dizer”, “se os meus pais ou amigos souberem”, da culpa, da discriminação... – do que da sexualidade em si (5). Neste sentido, como expressa com pertinência Júlio Nascimento,
a homossexualidade é um hífen [professor-homossexual, vendedor-homossexual, filho-homossexual] (...) que obedece a função F(S) = x-h, onde lê-se a função de um sujeito {F(S)} é definida por qualquer atributo ou representação do eu (x) que estará colada ao discurso hegemônico sobre a homossexualidade (1998, p. 115).